.da amizade
"É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde."
(Clarice Lispector)
Eu ouvi um “psiu” quando estava atravessando a rua. Estava tendo feira e eu não olhei porque feira é sempre uma gritaria e a gente não sabe quem está falando com quem. (Aliás, psiu é mesmo uma coisa desagradável porque a gente sabe que não deve olhar, mas dá uma vontade de saber quem é... aí você olha e vê aqueles risinhos cretinos ou comentários desnecessários, se você não olha, ouve alguém conhecido te chamando de metida que fingiu que não viu e não ouviu o fulano.) Continuei andando e ele não insistiu no psiu, percebi alguém me acompanhando e quando olhei era ele. Fiquei feliz em vê-lo, estava tão bonito, mais alto, mais forte, com o mesmo sorriso que eu gostava tanto de compartilhar. Conversamos um pouco e no instante em que eu ia perguntar do Nelson, ele foi mais rápido e me disse: “Pri, o Nelson morreu.”
Como assim, o Nelson morreu? Eu não sei se você já sentiu algo parecido, mas o mundo parou naquele momento. Parou e me trouxe de volta os momentos em que vivi com o Nelson e a única coisa que eu queria era que alguém me explicasse: como assim, o Nelson morreu? A resposta que recebi foi: Morreu atropelado por um tróleibus enquanto atravessava a rua prá fazer uma entrega do trabalho dele. Desceu do caminhão e foi levar a uma caixa, mas o tróleibus bateu nele de lado e jogou longe.
Tá bom, mas como? Eu queria que alguém me respondesse, não como foi a morte dele, mas como seria possível ele ter morrido. E daí que todo mundo vai morrer, que a morte é a única coisa certa nessa vida, que cada um tem a sua hora, enfim, dane-se. E eu ria. Porque eu tenho a maldita mania de rir quando eu não tenho resposta, quando não tenho absolutamente nada o que fazer.
O Nelson tinha 25 anos, moreno, aproximadamente 1,67m, era casado há três anos com a Simone e a filhinha deles vai completar um ano em Junho. Ele trabalhava muito, em várias coisas, terminou o ensino médio em 2002 e tinha planos de fazer uma faculdade, mas queria antes que a Simone concluísse seu curso de enfermagem. Ele não tinha planos prá ele. Tinha planos prá mãe dele, pros irmãos dele, pro primo dele, (esse que encontrei na feira e me deu a notícia) prá Simone e prá filha. Ele não precisava de muito prá viver. Provavelmente ele não levou nenhum arrependimento por algo que deixou de fazer. Porque o Nelson foi inteiro em cada coisa que ele fez e se doou inteiro prá cada pessoa com quem esteve. Parece até que ele sabia que não tinha muito tempo. É, não temos muito tempo.
Quando eu tinha 16 anos eu mudei de escola e comecei a estudar a noite. Lá eu conheci o Nelson. E depois eu percebi que praticamente todo mundo lá também o conhecia! Naquela época só nós dois trabalhávamos na nossa sala. Eu trabalhava em uma oficina de funilaria e pintura, ele trabalhava na feira e em uma loja de calçados e por vezes chegávamos atrasados e parávamos prá comer na padaria da esquina até a hora da segunda aula. Ele andava com aquele jeitão despojado, falando alto e falando muuuuito, tanto que às vezes até irritava, mas quando faltava fazia tanta falta! No começo a gente pegava o mesmo ônibus, depois ele comprou uma Belina e passava em casa prá me buscar, junto com um amigo e mais dois primos que estavam estudando na mesma escola também. Isso nos causou algum atraso porque às vezes o possante quebrava no meio do caminho. Geralmente ele me dava carona na volta, quando ele não tinha que levar os meninos em casa, porque bebiam até cair. Ele não bebia dessa maneira porque afinal tinha que trabalhar no dia seguinte e não precisava provar nada prá ninguém.
Quando eu tinha 15 anos o meu pai foi embora e desde que eu percebi que ele não voltaria, eu decidi que o melhor negócio da vida seria não criar vínculos, porque você já deve saber disso, depois de criado um vínculo dói demais se ele se quebra, ou acaba, ou vai embora, ou qualquer coisa do tipo. E eu decidi que se eu já estava atrapalhada demais prá conviver com um buraco no meu coração eu não iria suportar ter mais nenhum. Mas aí eu conheci o Nelson, e ele não pediu licença, ele não quis saber se eu estava mais é querendo que todos os seres humanos ficassem bem longe de mim. Ele simplesmente invadiu a minha vida.
Hoje eu respondo SIM à pergunta: “Existe amizade entre homem e mulher?” SIM, é claro que existe! Se você não acredita você devia ter conhecido o meu amigo Nelson. Pena que eu não vou poder mais te levar prá tomar um café com ele. Ah eu não posso te convidar prá conhecê-lo, mas você ia adorar vê-lo sorrir. Você deve conhecer alguém que parece que só atrai coisa boa, com certeza você conhece alguém que te faz muito bem. Mas talvez você não tenha conhecido o Nelson, e minha nossa, como eu sou feliz por ter tido esse privilégio.
Nós não sabemos mesmo quanto tempo vamos ter prá gastar, prá aproveitar, prá viver com cada pessoa. Eu ainda não acredito que eu já não tenho mais nenhum tempo com o Nelson, nem direito a um, só mais um telefonema, um torpedo que seja. Se eu tivesse direito a pelo menos 140 caracteres prá ele ler eu mandaria: “Seu FDP aposto que passou correndo feito louco na frente do tróleibus. Vai com Deus. Te amo.”
Por acaso vi hoje uma cena de uma novela nova em que um menino que morreu se encontrava com sua mãe que já tinha morrido antes. Se eu acreditasse nessa possibilidade, talvez ficasse mais alegre pela chance de um novo abraço. Mas como acredito que só nos encontramos aqui, fico menos triste por saber que não ficou nada a ser dito, porque ele me ensinou na prática que os sentimentos só servem se vividos no presente e que as pessoas que são especiais prá você devem saber disso. Ele soube o quanto era especial prá mim, o quanto eu o amava, o quanto eu gostava daquele sorriso sem vergonha, o quanto eu me sentia segura com ele.
Ele me mostrou que os vínculos não tem garantia, mas os bons ainda valem a pena e duram para sempre, independente de onde estivermos. E além do mais o nosso coração é vazio, um grande buraco que precisamos preencher com pessoas assim, durante o tempo que nos for permitido.
Agora que você já sabe o quão bom foi compartilhar a minha vida com esse menino, talvez você saiba me dizer, como assim o Nelson morreu? Se você souber me diga, mas se por acaso você não souber, ria comigo. A gente não sabe nada mesmo.
Bom final de domingo.
Priscila
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